quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Com todas as forças do Mundo


127.

Alzira repousa as suas ideias. Estas novas palavras serão acrescentadas a todas as outras que repousam no interior da caixa que Gamélia lhe ofertou. Juntá-las-á às lembranças daquele longínquo Verão de sessenta e dois.
Fazia algum tempo que Alzira desejava cumprir esta vontade. Desde que António Júlio se despediu de si, faz este Outono três anos, jurou imaginar um enredo em que as posições desta realidade surgissem trocadas, em que fosse ela a ter sofrido as maleitas da doença que lhe levou o companheiro no curto espaço de oito meses. Um enredo em que tivesse sido ela a escolhida para essa viagem. Colocar-se na pele do companheiro de uma vida, com tantas promessas e histórias para dar e receber, tantas poesias, tantos sonhos, tantos romances, tantas viagens para partilhar, tantos sabores. Imaginar as emoções, o sofrimento, a dor, os momentos de solidão e a capacidade em resistir, enfrentar o destino olhos nos olhos, cara a cara, ser capaz de lhe fazer frente, avançar com a vida porque essa é sempre a opção mais correcta, mesmo quando não se encontram listados em nenhum local os termos para essa concretização.
O comboio mantém sempre o rumo destinado pelos carris onde se move. As rodas rodam, rodam, mantendo os seus passageiros numa ilusão de segurança, sentados nas suas poltronas, olhando fixamente a paisagem que se vai desdobrando veloz pelas janelas.
Alzira acrescentou esse prazer de viagens às configurações da sua inspiração. Cada novo passageiro, cada conversa circunstancial que ia bebendo, os rostos e os olhares que foi interpretando, foram originais alinhamentos que depois filtrou e trabalhou de maneira concertada até deles retirar o devido valor em palavras. Teceu-as em estruturados enredos através dos seus dedos experimentados e segundo as instruções que a alma lhe foi comunicando. As inúmeras voltas e viagens destes últimos meses resgataram esta história onde Tó apareceu como actor principal, juntamente com o seu cão Castro, que sofreu como ninguém o desaparecimento do grande amigo. Tal como na história que acabou de criar, Alzira inventou esta maneira de se fazer passar por morta, estendida inerte num imenso sofá emprestado, encenando-a com uma posse propositadamente descuidada, só para sentir o dó e a pena causadas no seu companheiro António Júlio. Sofreu com o sofrimento causado pelo desaparecimento da vida que havia no marido e se esgotou. Transformou-o novamente em vida, trouxe-o de Husadel e imaginou-se no seu lugar, fitando olhos nos olhos o rosto sereno e tranquilo de Gamélia.
O conforto causado pela conclusão desta promessa trouxe-lhe a vontade de um pequeno festejo na tranquilidade da sua casa em Santo Tirso. Desceu as escadas com o peso do solar dos Sousa Bessa a fazer-se sentir nos retratos que decoram a parede em direcção ao piso térreo. A cozinha aguarda sorridente a sua chegada. Um chá de tília e ervas doces será o supremo deleite com que irá dar comemoração a mais este instante do percurso. Avança em direcção ao salão onde se resguarda na antiga “chaise longue”. Aconchega as pernas e prepara-se para dar o primeiro trago neste chá de felicidade. Castro, convidado pelo doce aroma que temperou o ar do salão, resolveu juntar-se à festa da dona, aparecendo sem provocar qualquer ruído e indo-se deitar delicadamente junto às pernas rainha Ana da “chaise”, fazendo companhia às pequenas pantufas de Alzira.
As mãos da escritora desceram até à cabeça negra do animal, tão amigo, tão fiel, em forma de carinho, e por ali se entretiveram a passear este momento de felicidade, desejando com todas as forças do Mundo que esta amizade possa nunca vir a ter um

F I M

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Deo Gratias


126.

Organizadas numa concordante serenidade, retemperadas de todos os ritmos destas encruzilhadas, as almas destes viajantes apartados nos avanços e recuos do tempo atingiram um novo degrau no seu caminho. Aguardam os novos ritmos destinados nas palavras escritas pelos Deuses no livro dos mortos, tão religiosamente lido vezes e vezes sem conta por todas as mulheres anjo de Husadel.
António Júlio sentiu a perna direita morna, junto à zona da coxa. A sua mão avançou na direcção do bolso das calças, de forma quase mecânica. Esse sentido aquecimento provinha do seu interior. Deu conta do pequeno cartão que Filomena lhe entregou no encontro da Batalha com um sorriso nos olhos. As letras em azul ultramarino que nele lhe davam todas as informações necessárias, do nome, morada e contactos, saltavam tranquilamente naquele rectângulo de rosa pálido, num doce e tépido bailado que lhe chamara a atenção. O futuro estava ali, ao virar daquele sorriso, na serenidade e sensibilidade descobertas nas palavras daquela mulher. O futuro continua a ser destinado pelas suas mãos, pela coragem das suas palavras que passa para papel em forma de poemas, em forma de contos, em forma de romances, em forma de sonhos que alimentam os sonhos de outras tantas almas que os vão depois encontrar e decifrar, tornando seus.
Francisca já não tinha mais medo da morte, nem do futuro, nem do destino que lhe proporcionarão os muitos e muitos anos que a sua vida se encarregará de fazer crescer em si. O forte abraço com que se encontra unida ao seu fiel amigo negro é tudo o que necessita para que o Mundo se encontre pintado com as deliciosas cores do Paraíso. Para duas crianças como estas, nada tem maior importância ou mais doce e perfumado sabor do que o sentido abraço da verdadeira amizade.
Gamélia observa do alto do seu pássaro de asas tão delicadas como robustas toda a azáfama com que os Deuses reconstroem as paisagens geladas de Husadel. As barcaças dos infinitos espaços daquelas paragens avançam em direcção aos lugares destinados a cada mulher anjo. Tal como Gamélia, também as outras mágicas mulheres não conseguem deixar de se sentir esmagadas por tanta perfeição, pela tamanha dimensão daquele acto de Divinas proporções, pelo forte sentimento de alívio que sentem ao relembrar toda a destruição que por ali lhes foi servida e as imagens que agora voltam a ter à frente de seus olhos. Duas pequenas lágrimas rapidamente se sentiram congelar nas faces do seu rosto perfeito. Sabia que Alzira já não iria necessitar da sua companhia, o que lhe provocou alegria mas também a tristeza de não mais poder vir a sentir o prazer da sua companhia física. A estas mulheres anjo só muito raramente são concedidas estas incumbências. Só acontecem de seiscentos em seiscentos anos e a Gamélia nem foi dada a possibilidade de dela se ter despedido, tal como era a sua primeira intenção. Sabia que, apesar de tudo, Alzira já tinha descoberto as respostas para a verdadeira dimensão das suas dúvidas. A caixa que lhe desejava presentear estava bem guardada em si, dentro da extraordinária sensibilidade e coragem da jovem menina adormecida. Foi ela que conseguiu salvar este extraordinário universo de Husadel, através das forças que encontrou para conseguir encerrar com perícia e todo o cuidado do Mundo, as páginas geladas do seu diário. A caixa e as peças do puzzle que se vai construindo com o seu nome na tampa, não são mais que as extraordinárias histórias que deposita nesses seus espantosos diários, com a coragem da razão e a força determinada da sua imensa esperança.
Este Verão construiu e fortaleceu o seu carácter em força e com vibrante sensibilidade, como em mais nenhum outro voltará a realizar.
Castro, pajem feito homem num reino em construção, repleto de medievas histórias de conquista, avistava as figuras que se aproximavam do jardim desenhado no interior dos pátios do castelo de Tomar. Fernando Dias e os seus Templários chegavam vindos de Montemor com as certezas do dever cumprido, de mais uma página de história acrescentada aos muitos capítulos das suas vidas, sempre ao serviço de Nosso Senhor, com o sempre presente mistério das Divinas equações a aquecerem os seus passos, a temperarem a construção das suas caminhadas. Desceu feito um louco ao seu encontro, revigorado pela esperança das sábias palavras de Henry de Villepin, com a vontade acrescida de honrar aquele Santo e Sagrado local com o mais revigorante e fraterno dos abraços. Ao descer da sua montada, Fernando Dias foi assaltado pelo corpo esfuziante daquele jovem, cuja incontida alegria em o ver vivo e em perfeitas condições de saúde lhe provocara aquele acometimento de loucura. Os olhos de Fernando Dias cobriram-se de sentimentos de contentamento ao observarem o saudável pajem, correndo acelerado ao seu encontro. No frutuoso abraço paternal que se seguiu, deitaram-se abaixo as barreiras das necessárias e contidas regras de comedimento, falaram mais alto os sentimentos primários de satisfação e alegria.
Mestre Fernando Dias virou-se para os seus valorosos cavaleiros e com a alegria bem carregada na face iluminou o ar com estas palavras:
- A vida é construída pelos corajosos, pela esperança e pela vontade em continuarmos unidos na defesa daquilo que consideramos justo, Divino e Sagrado. A felicidade sentida aqui, neste momento, significa que cumprimos e levámos a bom porto uma santa missão. Que o Divino Espírito Santo proteja para sempre este Reino e ilumine os caminhos daqueles que o governam e de todos os que carregam nas costas a espinhosa tarefa de ajudar na sua edificação.
Com as armas na mão esquerda, a direita bem aberta sobre o peito, o olhar em direcção ao infinito céu, depois virado em oração na direcção do solo, todos os cavaleiros deram graças a Nosso Senhor Jesus Cristo. Conseguiram manter-se firmes e resguardados dos perigos que surgem na escuridão dos caminhos e que tantas vezes impedem o cumprimento das Santas Missões.
El-rei Dom Sancho I acompanhava a Infanta Dona Teresa no passeio de regresso ao Lorvão, cativa que a tivera mantido, resguardada em segredo e retiro durante todo este período de ameaças, no castelo de Pinhel. As notícias já lhe tinham sido comunicadas, bem como as evidências que provaram a morte de Sabiano Raimundo. Não mais se encontra no reino dos vivos, nem qualquer dos outros que o acompanharam na sua infernal demanda por terras Lusitanas, espalhando o medo, a morte e a crueldade, fazendo crescer nas raízes do povo o boato de que o Demónio tinha descido dos Céus para na Terra fazer sua justiça. As esperançosas e revigoradas cores pintadas no coração de el-rei Dom Sancho I servirão para alimentar e dar sustento em coragem para os seus próximos anos de reinado. Aí guarda também um local especial para os seus honrados e fiéis Templários, sempre preparados para proporcionar as necessárias ajudas na construção e defesa dos reais interesses desta tão nova Nação.
Pai e filha, de mãos dadas, avançam de olhos postos num esperançoso futuro com os corpos carregados de genuína felicidade.
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domingo, 26 de outubro de 2008

Todo o verbo é um sinal Divino


125.

Novas imagens de dor e prostração eram servidas em sangrentas imagens a Castro, com muita intensidade, derramadas lentamente na alma em dolorosos pesadelos. Novos cavaleiros Templários, nos quais não figurava o seu senhor Fernando Dias ou qualquer dos outros elementos do seu fidelíssimo grupo de combatentes, eram sujeitos aos maiores e mais bárbaros actos de selvajaria, torturas e mortes em quantidades tais que nenhum desses homens acabaria por se salvar desse expurgo. O receio em falhar a concretização da missão que lhe foi secretamente destinada, ainda mais a tão curta distância do seu destino final, trazia o pajem muito cansado, nervoso e alterado. Todas as imagens lhe começam a parecer turvas e pouco silenciosas, sem garantias de consistência.
- A aflição e o cansaço começam a fazer de mim cativo. Repito tantas e tantas noites de fraco descanso, inclinado ao sagrado peso deste divino objecto que tamanha honra me abona e tanta apoquentação me tem talhado no espírito. Estas cruéis imagens de santos e fiéis homens em sofrimento que me são comunicadas com tanta densidade e veracidade em cheiros, sons e sabores de morte, são tristes novidades a aguardarem que o tempo as possa vir a trazer à luz da realidade, ou as faça para sempre desaparecer das páginas dos livros que escrevem o futuro da história dos homens.
O castelo de Tomar servirá de morada e abrigo a este objecto Sagrado, que desde a saída de Coimbra tem trazido Castro em tamanha aflição, mas ao mesmo tempo, seguro de que a sua vida não mais será a mesma. O seu mestre Fernando Dias deu-lhe ordens bem determinadas do local onde o deveria entregar e a quem o deveria fazer. Em Tomar, dar a cruz sagrada a um Templário cego chamado Henry de Villepin, às ordens de Phillipe de Pessiéz, guardador de segredos infinitos. De seu mestre recorda as palavras que lhe ouviu dizer acerca deste sábio homem cego que deverá encontrar em Tomar. Para ele não existe o infinito, pois o infinito surpreende-nos com a revelação da surpresa encarcerada nos seus limites. Já aquela tarde ia adiantando a chegada da escura noite, quando numa sala da alta torre de menagem do castelo de Tomar lhe foi dado a conhecer esse cego Templário Henry de Villepin. Movendo-se como se a visão não lhe tivesse sido retirada por castigo, avançou na direcção de Castro, apoiou ambas as mãos nos ombros do jovem e segredou-lhe as seguintes palavras em voz baixa e pausada, junto ao seu ouvido esquerdo.
- As pequenas areias que cada existência carrega em si, que esmagam pela constatação da sua impotência, vão bem para além da propagação dessa realidade, prolongam-se para lá dessa ideia de pequenez e fazem-se renascer num imenso infinito. Transfiguram-se em dor, pois a percepção que nasce da contemplação desse infinito é extremamente dolorosa e inquietante. O infinito passa a ser apenas essa intensa dor da razão que nos assalta o corpo. O infinito é o enorme peso de um pequeno e intemporal instante, que se dilata e solidifica marcando assim a sua mensagem, comunicando por gestos que se desejam eternos. Esses gestos são os trajectos a seguir, os pontos de destinos, as encruzilhadas nos caminhos, os vários estuários, e não são nem início nem fim de nada. Não existe qualquer vontade num gesto, apenas o impacto que produz, e a esse impacto não existe forma de lhe podermos escapar. Todo o verbo é um sinal Divino, um signo a decifrar, uma mensagem, e todas as palavras que dizemos, escrevemos ou que ainda iremos escutar, fazem todas parte deste mesmo texto do infinito. As cúpulas douradas da Sagrada existência permanecem dentro de cada um de nós, sendo impossível discernir a verdadeira dimensão desta intemporalidade. Esse objecto que tem em seu poder, encarregar-me-ei de colocar no local destinado, tal como escrito nesse texto infinito.
Seguidamente, passou as mãos pelo rosto de Castro para lhe sentir o retrato em pormenor, para lhe sentir o regresso da tranquilidade ao corpo, para lhe pedir, com um forte abraço de amizade, que lhe entregasse a Lignum Sanctae Crucis. Castro deixou finalmente de sentir o peso asfixiante daquela missão e, sem que para tal tivesse encontrado explicação, deixou também de ter medo da morte. O pajem entregou naquelas calejadas mãos do cego Templário o Sagrado objecto que tão bem protegera.
Foi desta forma que se voltou a agarrar à vida com as redobradas forças de quem descobrira, neste interregno da viagem, que ali naquele preciso e exacto momento, se dera início ao resto da sua vida.
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quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O resto da sua vida


124.

Subitamente, vindas do nada, surgiram muito ternas as memórias infinitas de Alzira, esse doce anjo bege de asas azuis imortais. O velho Taunus recuperara a correcta postura depois de António Júlio ter terminado a tarefa de mudança de pneu. Neste tempo que demorou o exercício, as ideias que lhe fizeram companhia possuíam duas identidades.
A primeira, trazia-lhe as imagens destes últimos renovados dias de esperança, com o corajoso recomeçar da tarefa literária, tão escondida e esquecida em si. Os fôlegos de coragem trazidos e entregues através de um pequeno corpo negro, agitado, camarada, de quatro patas e língua rosada. As caminhadas que realiza ao sabor destas reavivadas vontades, os segredos reencontrados, as imagens feitas palavras. Voltou a sentir em si essa capacidade de criação e o prazer que retira desse acto. A pureza deste oxigénio que agora respira reestruturara-lhe os atrofiados bronquíolos da alma. Relembra ainda a corrida destemida do amigo, pela noite dentro, saltando imprudente no asfalto, em busca de uma qualquer ajudante que lhe trouxesse serenidade àquela coceira.
A segunda, mais antiga, mais etérea e eterna, trazia-lhe as memórias da sua mulher, desenhada como sereno e tranquilo anjo bege de asas azuis. A alegria com que recebe esta estranha dádiva aquece-lhe a confiança, já não fornece angústias destemperadas à alma nem lhe presenteia as memórias com dor. As mãos de Alzira desenham no ar pequenos semicírculos com os dedos, comunicando a António Júlio que será esta a última das vezes que a terá assim em companhia. Muito delicadamente e com gestos demorados e pausados, leva aos lábios a mão direita, que beija amorosamente, um beijo de amor e despedida, que depois lançou na direcção de António Júlio.
O escritor agarrou-se ao volante com as redobradas forças de quem descobrira, neste interregno da viagem, que ali naquele preciso e exacto momento, se dera início ao resto da sua vida.
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terça-feira, 21 de outubro de 2008

A fragilidade de um suave sopro


123.D

Aguardam pela morte como pássaros perdidos. As primeiras aves que trinam o amanhecer, acalmam o seu canto espiando todos os acontecimentos no largo, junto à capela da fortificação.
Não pode existir outro desfecho para aquele grupo de homens. No centro daquela circunferência humana esperam pelas certeiras saraivadas. As setas encontram-se preparadas nas afinadas armas dos combatentes de Dom Sancho I e de alguns cavaleiros Templários de mestre Fernando Dias. Quando esta companheira aparece de forma imprevista as almas não produzem antecipadas imagens das suas histórias de vida. Carregam-se as mentes de uma letargia amorfa, doando aos membros dolência e movimentos inconsistentes. A surpresa vence a vontade em agir e reagir perante a situação assim criada. Ibrahim Abdul ergueu o alfange, levantando bem alto os seus braços. As mãos cerradas com as forças do destino agarram a arma com as vontades do adeus. Gritou um palavreado incompreensível, seguramente audível para lá da capital do reino e avançou ao acaso na direcção de um dos mais de cinquenta soldados armados que constituíam guarda naquela construção geométrica. Ao segundo dos passos da corrida já o seu corpo se encontrava sem vida, trespassado por quatro ou cinco setas saídas das bestas de outros tantos cavaleiros armados que os cercavam. A chuva de setas começou então a fazer-se sentir com maior intensidade e com impressionante perícia, sempre certeira nos alvos que procura encontrar. Os avanços dos outros mercenários, ao som do mesmo incompreensível palavreado de Ibrahim, surgiam como resultado das tentativas desesperadas em passar pela porta do destino final com a dignidade de um guerreiro. Os seus corpos eram servidos completamente cravados de setas, como se fossem alvos usados em treino acessível, ao barqueiro encarregue de os transportar para lá dessa porta do destino, em direcção aos iluminados lagos gelados de Husadel. As mulheres anjo já os aguardavam.
Sabiano Raimundo não consegue acreditar naquilo que os seus olhos observam. Num ápice, com a mesma rapidez com que um sonho se desfaz, com que uma vida se dilui, os seus companheiros de viagem vão caindo um após outro, cravejados sem dó nem piedade. Encontram os caminhos da morte com a dignidade de verdadeiros combatentes. O Zanata começou a ouvir o som das vozes dos guerreiros do deserto, os mesmos que o encontraram, tão novo, junto ao monte de cadáveres que lhe serviu de protecção. Relembra o calor, os odores, a sede e a angústia causada por esses sentimentos. Nenhum lhe ecoa tão intenso como a lembrança da aspereza da voz do chefe tribal que o resgatou, ao dar conhecimento da sua descoberta. Ouve essa voz com tanta clareza dentro de si, como se voltasse a ter a idade dessa sua tenra infância. Sente também a áspera areia misturada com o sangue seco que lhe pintava as parcas vestes, os braços e o rosto. Encobriam-lhe as maleitas de pele, atacada pelo inclemente sol do escaldante deserto berbere.
O tempo parado! Todas as vidas que ceifou recordadas num brevíssimo instante, através das imagens dos rostos que lhe iam cuspindo a face com desdém e com um forte sentimento de ódio. Os vultos protegidos dos homens que congeminaram esta bem urdida teia onde se enleou, passam em frente dos seus olhos, com maior repouso, cada um deles aguardando a ordem final que dará o comando para a conclusão da sua vida. Faysal e Sabiano aguardam firmes os gestos dos Templários. Olham-se cara a cara com os olhos vítreos e ramificados com as rubras marcas de uma vida gasta em infinitas viagens e outras tantas insensatas cruéis carnificinas. As suas vidas cansadas irão acabar ali e agora, sem remissão, sem honra, com a fragilidade de um suave sopro, ao som dos gelados silvos provocados pelos voos certeiros das setas lançadas por mais de uma vintena de certeiras bestas de combate.
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sábado, 18 de outubro de 2008

A desejada tonalidade de um segredo


123.C

Ao avançarem pela escura noite, abrigados pelas muralhas da parte Norte do castelo, os Templários faziam-no preparados para entrarem em contenda, caso isso se viesse a provar necessário. Nas mãos seguravam os instrumentos das batalhas, alguns com décadas de histórias, como as espadas de Gabriel de Béziers e Patrício de Zamora, que os acompanham desde os tempos já longínquos do início das suas peregrinações. Estes e todos os restantes combatentes que fazem parte da honrada e mui nobre guarda de mestre Fernando Dias, anteciparam os planos deste avanço numa estratégia bem urdida e convenientemente arquitectada com el-rei Dom Sancho I.
A carta que fora entregue a mestre Fernando Dias deu-lhe conta de uma acção planeada com uma táctica inteligente. A armadilha para dar terminação aos hábitos assassinos de Sabiano Raimundo encontra-se montada. O isco começou a ser mordido. A infanta real Dona Teresa Sanches não foi transportada para Montemor protegida por uma guarda e um séquito de acompanhantes, conforme Sabiano Raimundo julgava. As notícias desta fuga e do transporte da filha de el-rei foram propositadamente deixadas pelos caminhos do povo. As esquivas formas com que deram ocultação à jornada foram realizadas com intencionais irregularidades, para que tanto segredo não passasse em total invisibilidade. Apenas a necessária para lhe dar a desejada tonalidade de segredo.
O isco acabou por ser mordido. As intenções em aplicar a uma qualquer figura real os orgulhosos martírios do Demónio, eram saborosas demais para que o Zanata suspeitasse de algum ardil ou de planeada artimanha.
Esta madrugada anunciou a presença das figuras de Raimundo dentro do castelo de Montemor, como se suspeitava poder vir a acontecer. As luzes de duas tochas serviram de informação para Fernando Dias, tal como fora programado. A indicação foi transmitida na parte das muralhas viradas a Oeste, por tropas da especializada guarda privada de el-rei Dom Sancho I. Em conjunto com os fiéis cavaleiros Templários de Fernando Dias, a quem a tarefa foi também designada, vão no espaço fechado do castelo em Montemor receber com a honra devida Sabiano Raimundo e seus ferozes discípulos.
- As perdas de tantas vidas, que pelos caminhos desta cilada acabaram por tombar, serão recordadas na altura em que estes monstros de humanas formas forem trespassados pelas pontas de nossas espadas! Combatamos estes brutais e sanguinários assassinos servindo-lhes rápida a morte destinada. Que todas as almas inocentes dos que nas suas mãos sofreram inimagináveis torturas, possam, a partir de hoje, merecer a tranquilidade do descanso Eterno.
Com estas palavras de encorajamento, os Templários entraram de rompante pelo portão principal do castelo de Montemor, aberto por três dos guardas de elite comandados para esse efeito, após ter sido dado o sinal luminoso para o exterior. O ensurdecedor barulho de mais de trinta cavaleiros a avançar como um só pelo interior do castelo foi tal, que os fiéis mercenários de Raimundo, com Faysal à cabeça, pensaram tratar-se de novo tremor de terra como aquele que quase tinha engolido o chefe há poucos dias. Ao seu redor começaram a dar conta de um círculo de cavaleiros que os cercava sem permitir qualquer hipótese de fuga. De onde apareceram, como foi que ali chegaram, que artes dos Demos foram utilizadas para se encontrarem, no espaço de um simples momento, a poucos segundos de uma morte certa e atroz?
Das portas dos aposentos reais, junto à capela do castelo, agora abertas de par em par, saíram mais de vinte outros soldados, com trajes escuros e elmos negros, muito bem armados e de bestas apontadas às humanas bestas que ali espantadas e surpreendidas se quedavam à sua frente.
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No sossego dos silêncios



123.B

Raimundo aguardava pelas novidades do grupo enviado naquela espécie de missão de Tróia. Entrar juntamente com os pães que irão servir as manhãs da senhora infanta e de todo o séquito real, foi algo que lhe foi segredado enquanto permaneceu deitado com a cabeça de Mohammed agarrada com firmeza junto ao estômago. Cheirava as instruções que aguardava caídas do alto das muralhas em forma de cordas. Por elas treparão até se juntarem aos restantes camaradas de combate. Assim serão em número suficiente para enfrentarem a guarda que se mantém mais próxima de Dona Teresa, constituída por um muito maior número de homens e bem mais experientes nas artes do combate corpo a corpo. O tempo permanecia silencioso e estático. Aguardava pelo desenrolar do enredo desta orquestrada guerrilha. A decisão do Zanata estava tomada desde a saída do Lorvão onde sentiu quase de imediato um grande arrependimento. Não devia ter tomado a resolução de apenas amedrontar a figura da infanta. Logo ali lhe deveria ter proporcionado o devido falecimento.
Do lado Oeste avançam, cansadas, as forças Templárias de Fernando Dias, com planos para surpreenderem os protagonistas desta guerrilha de terror que vem sendo orquestrada nos últimos anos pelos dementes mercenários de Sabiano Raimundo. O tempo recomeçou o seu movimento de forma espontânea, mal sentiu os cavalos a aproximarem-se, corajosos, avançando encobertos pela noite, em direcção a Montemor.
Dentro das muralhas do Castelo, dois dos quatro guardas responsáveis pela guarda do portão principal preparam-se para a rotina daquelas horas. A pesada portada foi aberta ao panificador e a outros fornecedores que aí vieram apresentar os mantimentos e outros víveres, para se manterem novidades frescas nas mesas dos seus reais habitantes, todas as manhãs. O nervoso padeiro sofria a pressão da morte a ser cravada, já com a ponta ensanguentada, no baixo-ventre, por Faysal Bin Ali, sem qualquer relaxamento. A passagem para o interior da fortificação foi realizada debaixo dos sorrisos da guarda que muito apreciava o cheiro delicioso que emanava do pão quente protegido e transportado na traseira da carroça, nervosamente governada pelas trémulas mãos do desgraçado panificador. Já não conseguia amparar as lágrimas de dor, medo e sentimento, pela terrível perda que aqueles infames lhe tinham há bem pouco tempo proporcionado. No interior do castelo, os restantes mercenários saíram com a rapidez de gatos do deserto do fundo da carroça onde se encobriam, munidos de bestas tão letais como a eficácia da pontaria com que retiraram a vida aos quatro vigilantes da portada. Ainda sorriam quando as muitas setas os começaram a trespassar.
Ao padeiro, Faysal cumpriu com o prometido. Presenteou-o com um brusco e pouco doloroso fenecimento, para que se pudesse juntar à restante família no curto espaço de uma lâmina requintada.
- Rápido, não temos mais tempo a perder! Atiremos, com o sossego dos silêncios, as escadas de corda pelas muralhas abaixo. Façam sinais para que os nossos as subam e aqui se venham juntar. Façam-no com calma. Os combates que ainda nos aguardam não se compadecem com falhas ou desconcentrações.
Assim que terminou o sibilante ruído da queda das escadas de corda, Raimundo e todos os restantes mercenários subiram com ligeireza e muita perícia por elas acima, alcançando rapidamente o topo das muralhas e esgueirando-se para o interior do castelo por entre as ameias da imensa parede de pedra virada a Oriente. Os corpos dos guardas jaziam inclinados como estátuas guerreiras, colocados que foram uns sobre os outros, como um pequeno monte de sobejo humano sem significado. Raimundo deu ordens para que os deixassem assim, já preparados para servirem de rastilho às labaredas que lhes serão ateadas e a todos os restantes que ainda lhes serão acrescentados.
O cérebro de Sabiano não pára de lhe dar instruções. Muitas são as ferramentas que continuam a operar a sua enlouquecida crueldade sem darem mostras de qualquer espécie de cansaço. Demonstra, talvez por isso mesmo, uma frieza e lucidez de espírito que lhe permite encontrar-se a poucos instantes do objectivo desta missão delirante. Dar seguimento aos actos de infernal e sanguinária barbaridade, perpetuando no reino de Portugal, nesta terra abençoada por Nosso Senhor Jesus Cristo, todos os medos e todos os pavores existentes nas profundezas obscuras dos abismos Infernais. Nada melhor para alimentar esses intentos e horrores do que ir fornecendo ao Rei e ao seu povo os restos mortais da jovem infanta, feita noviça Beneditina em Lorvão, em pequenos pedaços, com a regularidade e os intervalos que a sua insanidade lhe vier a comunicar.
Fernando Dias encontra-se a poucos minutos da entrada do castelo, carregando com os seus Templários os frescos odores marinhos do Atlântico e uma sentida vontade em terminar aqui a tormentosa perseguição que se arrasta, cinzenta, por longos meses de agitadas e infrutíferas digressões. O cansaço provocado pelos estéreis resultados desta demanda foi, mais uma vez, afastado pela visão do monumento onde repousa o santo resultado desta sagrada missão.
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sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Dentes-de-leão


123.A

Para esta noite se adivinham descomedidos actos de dissonante loucura. Acabar esta fresca madrugada com a presentação de todo o alfabeto de tortura àqueles que protegem a infanta Teresa, à própria filha de el-rei Dom Sancho I, aos animais, a quem ouse aparecer-lhes pela frente, a qualquer criatura que resolva fazer passagem pelo proscénio deste acontecimento. Nada se mexe naquela pintura nocturna, nada, nem a força da pequena brisa ganha coragem suficiente para fazer bailar os adormecidos dentes-de-leão. O tempo serenou de uma forma tal que se diria estar parado.
Os vultos de Raimundo e dos seus acompanhantes serpenteavam como víboras pelas pequenas elevações de terreno que cercavam as muralhas do castelo em Montemor. Fugiam com todas as cautelas da vigilância ritmada com que os guardas, lá em cima, iam resguardando o repouso da real infanta. Estava serena e profundamente adormecida, com as aias respectivas, nos aposentos do castelo, na sua ala mais a Este, virada para os longos azuis esverdeados das belas águas do Mondego.
A sabedoria de Raimundo conseguiu congeminar um estratagema para que a entrada pela porta principal do castelo se efectuasse com a maior das naturalidades. A família do panificador encontrava-se já de viagem para as divinas terras de Nosso Senhor. As três crianças que a mãe mantinha abrigadas junto a si, foram os primeiros anjos acrescentados em companhia aos que pelos divinos céus bailam etéreos. Aos horrorizados gritos de dor daquela mãe amargurada, juntaram-lhe os gritos de dor física sentidos na aplicação de um firme e rápido golpe de sabre, que lhe pintou o corpo com as cores de uma cascata avermelhada. A todo este acto de insana desumanidade, o destroçado homem, que trabalha no fabrico e na distribuição do alimento da vida para as muitas gentes trabalhadoras das terras de Montemor, foi obrigado a assistir pelos assassinos de Raimundo. Colocaram-no, com o produto daquela madrugada de labuta, na carroça das viagens de entrega, com as rédeas das montadas na mão. Escondidos no meio do muito pão de milho, de broas de batata e pães de cevada, colocaram-se seis dos homens de Sabiano, armados de todas as vontades de morte. Ao lado do desgraçado homem, colocou-se o mercenário Faysal, de adaga bem encostada ao corpo do panificador, que ia ameaçando de morte. Caso ele desse aviso à guarda do castelo que ali se encontrava um destino bem diferente do doce sabor a pão quente que provinha de tanta saborosa fartura, os seus intestinos rapidamente conheceriam as tintas com que se pintava aquela madrugada.
-Como se pode avançar nesta escuridão de medos, onde os receios nos cobrem o corpo de alto a baixo com negrume? Tantas desgraçadas vidas já ceifadas em nome de causas de conquista, de credos ou de Justiças Divinas. Tantas mortes perpetuadas pelas ordens dos importantes senhores que nos comandam as vontades e os actos como astutos generais sem medo. Por que se mata, tantas vezes, ao descuido de ordens transmitidas sem que delas se faça o devido e necessário entendimento? Neste perpetuado mistério vão-se as almas completando, entrelaçando, enleando em complicadas teias de quebradiço carvão. Hoje é a noite e o dia em que a tarefa de salvar a vida da filha do nosso rei será realizada. Nem que para isso nos arranquem todos os ossos do corpo, apagando-lhe o sopro desta vida. Palavra de Fernando Dias!
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quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Profunda e transparente amizade


122.

As calmas noites dos muitos silêncios que ainda pintarão os sonhos de Alzira, serão as amigas onde se abrigará a continuada escrita do secreto diário. Depois de nele terem sido encerradas as lembranças geladas daquele infinito e tortuoso carrossel branco, com todos os cuidados do Mundo, a menina descansou um sono perfeito nas nuvens da sua cama. Não foi interrompida nesse repouso por qualquer conto que lhe alimentasse as imagens dos sonhos.
Aproveitando a serenidade deste descanso, todos os voos em Husadel procuraram formas de resgatar e abrigar, com esperança, todos aqueles viajantes perdidos. Muitos são os sonhos que as memórias perdidas não conseguirão acompanhar. São quase infinitas as caminhadas a realizar, os transportes de tantas almas que caminham libertas mas perigosamente desprotegidas, as necessárias recolhas com os devidos cuidados, a sua metódica arrumação, executada cumprindo todos os correctos requisitos de atenção. Trata-se, no fundo, de salvar toda a Humanidade que, de outra forma, se arriscaria a uma precoce extinção nesse longínquo Universo de Husadel.
Os lagos gelados começaram imediatamente a ser reconstruídos pelos Deuses, que se entre ajudaram no cumprimento dessa missão. O enorme abraço entre Francisca e Castro continuava a ser exercido no espaço restrito daquele automóvel, como se o tempo tivesse deixado de fazer qualquer sentido. Era tão profunda esta amizade, tão intensa e transparente, que as suas almas se elevaram para aquele mítico lugar que todos julgamos poder existir, mas que apenas os de coração puro alguma vez conseguirão visitar. É aí, nesse local e neste instante, que se encontram Castro e Francisca abraçados como se fossem um só.
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quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Com a coragem de mil adultos


121.
-Há sempre uma razão para tudo. Para os sonhos, os pesadelos, para a escolha dos lugares que visitamos. E existem também razões que nos fazem convidar as lágrimas para passeios em nossos rostos. Tu és tão nova querida Francisca, nova demais para te apoquentares com esses assuntos. Não aparecem com normalidade essas preocupações em meninas assim tão novinhas. Na tua vida não existem inimigos e nem o passar do tempo pode ser suficientemente malévolo para te começar a incomodar com essas ideias, minha querida.
A sonoridade tranquila com que estas palavras foram proferidas pela avó Filomena, serenaram o desassossego da menina, que continuava a apertar as vividas e sábias mãos da avó enquanto Esperança mantinha, sabe Deus com que dificuldade, as palavras guardadas e o volante devidamente estabilizado. Esta agitação repentina de Francisca fizera com que Filomena deixasse de tentar acompanhar as luzes da viatura de António Júlio, que esquecera quase por completo. O pequeno grande ferimento, sentido assim tão forte dentro da alma da neta, carecia de toda a atenção e cuidado. A noite descera sem sobressalto. O restante caminho em falta até casa do pai de Francisca, que iria usufruir este fim-de-semana da companhia da filha tão estimada, assim determinara a justiça, de quinze em quinze dias, foi efectuado em silêncio. Essa foi uma outra dor que a neta teve de aprender a engolir com a coragem de mil adultos, como se uma anterior experiência de vida a tivesse dotado com as sábias astúcias do pressentimento.
A imensa alegria que dos seus olhos transborda quando se realiza no carinho de um cão, que tanto deseja aprender a cuidar, dá um prazer imenso em observar. O enorme gozo que sente esse coração inocente e puro a bater corajoso no peito da neta, faz transbordar os ritmos desse deleite com toda a felicidade do Mundo.
Ao realizar esta complexa análise aos últimos dias passados na companhia de Esperança e Francisca, os olhos de Filomena descobriram a negra forma de Castro, que corria mágica pelo passeio, junto ao edifício da Camâra Municipal. Não conseguiu evitar um certo espanto. Primeiro certificou-se de que era mesmo Castro, e não um outro qualquer cão preto parecido que por ali resolvera praticar as artes da corrida. Aquela coleira agarrada ao pescoço era demasiado estranha para que duas iguais pudessem rondar pescoços de cães semelhantes. Não havia dúvida. Aquele era mesmo o cão do escritor que conheceram na Batalha.
-Olha Francisca! Repara Filomena! Já viram bem quem vai ali no passeio a correr feito um tolinho? É Castro, aquele cão simpático. Mas que coisa tão estranha! Deve ter fugido do dono. Bem nos disse não ter coragem para lhe limitar as vontades.
As ainda húmidas faces de Francisca ganharam revigoradas tonalidades rosadas. O seu olhar adquiriu o brilho luminoso das estrelas. A mão direita avançou automática em direcção ao pequeno botão que ordenou a abertura da janela da porta traseira do carro da mãe.
- Castro! Lindo Castro! Cãozinho lindo! Anda cá, sou eu, a Francisca.
Esperança sentiu um estranho apelo que fez com que a viatura se imobilizasse, de forma rápida, junto a uma paragem de autocarro que ali perto se encontrava. O animal, mal ouviu as palavras doces de Francisca a virem ao seu encontro, saltou com a dedicação da amizade em direcção à voz da amiga.
A porta aberta por Francisca deu a indicação do caminho a seguir. Castro resolveu aceitar o afectuoso convite da menina. Tudo aquilo que a cidade lhe acabara de fornecer em lembranças renovadas desaparecera das suas memórias no exacto instante em que a porta da viatura se fechou atrás de si, comandada pelas contentíssimas mãos da pequena menina. Francisca abraçou Castro, ou terá sido o contrário, tanto faz. No momento em que se deu início a esse gesto de carinho, Francisca fechou os olhos e aproveitou aquele abraço como se tivesse sido apenas o primeiro.
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terça-feira, 14 de outubro de 2008

Endémica paixão


120.


As alterações das distâncias da viagem tornavam impossível a demonstração de afectos entre Castro e os novos corações que o adoptaram. Deambulando pelos espaços antigos da alta de Coimbra, o cão sente-se aquecido pelos locais que sente estranhamente seus, apesar de nunca por aqui ter anteriormente vagueado. A sede que lhe provoca esta enorme sensação, mata-a com constantes e inesperados corrupios, correndo pelas ruelas, calçadas, escadarias, até junto à Sé Velha, cheirando-lhe depois todos os perfumes e tragédias e adivinhando-lhe as complexas sobrevivências das lembranças que por elas se cruzaram e se perpetuaram até ao dia de hoje. É impossível sentir-se órfão por estas paragens. As lembranças e as imagens que lhe vão surgindo, lado a lado com as mais reais que agora percepciona através dos seus olhos, soam-lhe doces e retemperadoras. Parecem-lhe escolhidas pelo toque dourado de Midas, deliciosamente eternas e adoravelmente assustadoras. O seu desejo em desvendar de onde o amor surge, porque se deu a conhecer desta forma endémica para depois se fazer desaparecer novamente como misteriosa bruma, fá-lo continuar a correr desvairadamente pelas ruas da cidade.
A forte personalidade daquelas lembranças carrega a sua alma com o peso das estrelas do firmamento e fá-lo genialmente. Consegue arrumar todas estas sensações e contagiante liberdade na pequena cabeça de um cão negro, que exala todos os cheiros da felicidade ao recordar os breves e intensos momentos de uma medieval paixão adolescente.
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Dois indissociáveis destinos


119.B

Os cavaleiros Templários avançam por entre verdes caminhos, seguros por arvoredo não muito frondoso. Fazem-no alterados pela vontade do seu mestre em avançar em direcção a Montemor pelos caminhos da costa, em direcção ao pôr-do-sol, e depois rumar a Norte, até à foz do Mondego. Avançam em direcção a Montemor surgindo pela via Oeste, menos utilizada e menos sujeita a antecipadas informações que deles dêem novidades ou antecipem as acções.
O silêncio reside nos membros do grupo de Sabiano. A noite cobre-lhes as acções como um espesso manto de tintas sedosas, como as utilizadas por dedicados monges copistas em mosteiros onde os ensinamentos dessas artísticas e sábias habilidades são perpetuados, passados de estres artífices para aprendizes abnegados, futuros mestres também eles. As muralhas do castelo são visíveis lá ao longe. Por entre os abrigos da noctívaga obscuridade, dos sons patinados de mochos, corujas, animais nocturnos de aquáticos hábitos pantanosos, avançam estas figuras furtivas, com as vontades atiçadas pela morte que lhes alimenta as forças e os espíritos. Nem um ruído lhes sai dos movimentos lentos e pausados. Ao longe observam as luzes dos guardas que realizam vigilância ao longo das ameias, dando desta forma conta do movimento dos seus homens. Mais silêncio. Os passos de avanço na direcção das suas paredes são realizados lentamente, pausadamente, sem alertas e com alicerces de dormência, para que o risco de aviso dos seus intentos não se espalhe aos ventos nocturnos, através de qualquer feitio, cheiro, som ou duração de palavras. Comunicam passando as suas ideias com os olhos da excitabilidade, que os realiza. Através da contemplação da criação destes horrores e receios, medos e mortes que vão semeando, tornando-as reais com as orientações insensatas de Raimundo. A morte é a eterna companheira de viagem destes animais desregulados. Ao observarem as estrelas do céu, vão imaginando nelas as almas apagadas e liquidadas das histórias por onde escreveram os horrores com o sangue e a devastação infligida.
Nos caminhos seguidos pelo grupo que transporta a defesa da vida da infanta em seu regaço, a certeza de uma morte, ou duas, ou três que surjam nesta empreitada, são um mal menor no resultado aguardado por Fernando Dias. De acordo com o pedido veiculado por el-rei Dom Sancho I, a segurança de Dona Teresa, infanta de Portugal, é agora a lei que orienta as suas vidas. Não há outro destino a enfrentar. O tempo gasto no acrescentar em dia e horas, pela maior distância percorrida, foi efectuado com intenção de ludibriar, caso fosse necessário, pelo poder da surpresa, os assassinos que procuram enfrentar.
A imortalidade de cada instante de vida encontra-se nos tesouros que se descobrem nestas encruzilhadas de vontades, interesses, defesas ou acometimentos de desmedida loucura, que condimentam de sal e de fel os sabores de que se vestem. Soltam-se receios e temores. Sente-se, como só nestas ocasiões acontece, a serenidade dos tempos de infinito adiamento. Tudo fica suspenso, desde a respiração que se torna lenta e ofegante, até o batimento dos corações. O sangue que flúi nas veias sente-se ritmado junto aos ouvidos, a avisar dos temores e da perenidade de tudo o que tem existência no ténue espaço daquele instante.
Castro sentia o seu mestre distante. Era difícil a caminhada que o aguardava até Tomar, com o peso do destino que carrega nas costas, secreto, imenso, Divino e incandescente. A figura ausente de Fernando Dias aparecia representada no alto das sombras das montadas dos Templários que o acompanham, rumo ao destino final para aquele divino símbolo cristão. O pajem transporta-o como se sentisse a totalidade do peso da Cruz do Calvário a pesar-lhe nas costas. Esse peso tornou-se insuportável. As costas vergaram sob o jugo terrível dessa insustentável e dramática mudança de pressão. Algo de muito complexo estaria para acontecer. Estes sinais foram sentidos por Castro de tal maneira que se deitou de barriga para baixo, vergado ao intenso peso do objecto Sagrado. Caído no chão, a poucas léguas de Tomar, distanciado das ordens do seu mestre, teve uma visão que tão cedo não conseguirá esquecer. As imagens apareceram vigorosas, tão ensanguentadas e brilhantes que começou a sentir o líquido milagroso subir lentamente ao seu redor até o cobrir completamente. No calor desse mergulho, onde não se conseguia mover, Castro viu todos os cavaleiros Templários e o seu mestre Fernando serem consumidos nas labaredas de um enorme incêndio. Depois foram envolvidos por um espesso fumo negro que rodopiou vigoroso, levantando os corpos e transportando-os sem misericórdia até ao alto de um pequeno monte onde as cruzes para as suas crucificações os aguardavam. Envolvido neste irrespirável e denso banho de sangue, Castro acabou por reunir em si as forças necessárias para dele se afastar, arrastando-se com grande dificuldade para lá da sua imponência. Os cavaleiros que o acompanhavam ajudaram-no a levantar-se, com alguma dificuldade. Encontrava-se muito tenso e consternado. Todas aquelas premonitórias imagens tinham-no perturbado ao ponto de não encontrar nele a coragem necessária para explicar aquela experiência aos cavaleiros que acabaram de o auxiliar. As suas costas continuavam a guardar e amparar a Divina Cruz de Cristo. Aquelas imagens comunicaram-lhe que seria importantíssimo fazer chegar rapidamente, até ao abrigo do Castelo em Tomar, tão importante símbolo do Senhor.
O silêncio permanecia naquela madrugada junto a Montemor. Do lado Este das muralhas Raimundo e os seus avançam, furtivos, preparando com perícia a subida até ao alto do castelo, salvaguardados pela escuridão da lua nova. Do lado Oeste aproximam-se os valorosos cavaleiros Templários, com Fernando Dias à frente do grupo, preparado para dar cumprimento ao destino que sempre sentiu indissociável do de Sabiano Raimundo, apesar de nunca o ter conhecido.
Assim se dará cumprimento à Vontade de Nosso Senhor Jesus Cristo!
Amén!
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sábado, 11 de outubro de 2008

Ali se encontra Montemor


119.A

Pouco ou nenhum significado tem a vida humana para os acompanhantes de Sabiano Raimundo. O atormentado líder continuava agarrado ao seu troféu, sem sentir pinga de dor ou piedade. Os seus actos não careciam de qualquer esclarecimento. As vidas ceifadas eram abandonadas como gordas bátegas de chuva a cair pesadas em solo sedento de frescura. Já não há cansaço, padecimento, vigor ou metodologia de acção que seja minimamente coerente ou que obedeça a uma estratégia calculada com propósitos bem arquitectados. Ninguém neste grupo de carniceiros alienados segue em rigor um estratagema de acção. Apenas as ordens daquelas vozes tão frias, como frias têm sido as expressões de Raimundo, vão continuando a semear, na mente cada vez mais perturbada do Zanata, os propósitos do grupo. Largada a cabeça de Mohammed no fundo da fenda que se abriu como uma porta para os infernos, bem debaixo do corpo de Sabiano, as ordens foram dadas para continuarem a caminho de Montemor, com o intuito de presentear o séquito da infanta e a própria filha de el-rei Dom Sancho I, com uma viagem sem regresso ao mundo dos mortos. Ao monarca serão depois servidos os restos mortais da infanta, lenta e moderadamente, para que a dor dessa perda se vá perpetuando até ao limite da sua sanidade.
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O mais maravilhoso e enigmático segredo do Universo


118.


O ar fresco da noite iluminava o local onde António Júlio praticava a tarefa de mudança de pneu. Servia-se daquele interregno para apaziguar parte da ira sentida pelo acto irreflectido de Castro. Os cães não possuem grandes capacidades de reflexão, logo, para quê ficar tão alterado com a louca atitude do animal. Alguma coisa lhe provocou tamanha alteração na postura. Sentiu bem forte uma imensa vontade em abalar para fora da viatura em direcção ao exterior, e tudo isso sem que tivesse possibilitado, ao menos, a paragem do carro. Se correu ágil e esbaforido dali para o centro da noite, então certamente não estaria ferido ou com maleita susceptível de causar constrangimento e preocupação a António Júlio. O amigo teve um ataque de ansiedade, uma incontrolável vontade, mais uma cócega. E depois? Que mal pode vir daí ao Mundo? Provavelmente, tal como já sucedera anteriormente, antes que se dê conta, lá estará Castro a lamber-lhe as bochechas barbadas e tudo voltará a ser como dantes, sem erosão causada no alinho da sua amizade. Mas se assim o vai pensando, porque raio não consegue afastar aquela estranha sensação de ansiedade de quem acabou mesmo agora de perder um ente querido. Seria apenas a sua cabeça desalinhada a promover em si essa imagem de desilusão. A ideia do não regresso deste novo amigo. Firmada que estava esta amizade, estimada com um pacto de solenidade e esperança que não conseguiria imaginar há algumas semanas atrás, seria uma perversidade tamanha se Castro simplesmente resolvesse não mais aparecer. E Tó sabe muitíssimo bem que a estas almas livres coisa nenhuma, a não ser as vontades dos ventos, provocam alterações nas ondas das suas ritmadas marés.
Castro correu em direcção aos odores quase milenares que as riquezas perfumadas da cidade lhe misturam em imagens nas lembranças. Impossível seria tentar adivinhar as voltas que teria de dar para conseguir tocar e manter estas fortíssimas sensações que lhe vão arrebatando os sentidos. Subitamente, alguém abriu as comportas de uma colossal barragem hidroeléctrica na cabeça do pequeno cão negro. Esta cascata de milhares de imagens por segundo que invadiam as memórias do animal, provocam-lhe perturbação e ao mesmo tempo inebriantes sensações. Castro assume uma postura muito complexa. Vai tentando rotular, decifrar, interpretar e tão rapidamente quanto possível, arquivar e catalogar em novas localizações do seu concentradíssimo cérebro esta imensa quantidade de informação. Corre em direcção a alguns dos locais que este turbilhão de imagens lhe vai desenhando nas memórias. As opções são, contudo, imensas. Esta cidade de Coimbra adocicou-lhe a poesia dos sonhos. Uma imagem lhe surgia, com os mistérios dos sentidos, acima de todas as outras. Os adocicados e deleitosos odores daquela Princesa que lhe surgia bela, mágica e tão deliciosamente jovem, provinham lá do alto da cidade, onde as imagens de muralhas e construções medievas se misturam com estas modernas luzes da cidade. Acima de todas as imagens, odores e perfumes, surgia a memória de uma jovem quente, com sabores a rosa e caril, pimenta, alecrim, jasmim, palhas húmidas e odores a transpiração humana saturada com todos os incensos do prazer. Cada vez que a sua imagem e os deliciosos perfumes que a ela lhe estavam associados se tornam mais nítidos na cabeça de Castro, mais lhe dói a orelha ferida no salto para a liberdade que praticou há alguns instantes. Ladra e corre como um jovem menino cão a quem os Deuses decidiram mostrar, por breves instantes, o mais maravilhoso e enigmático segredo do Universo. Como se encontram interrelacionadas as memórias de todos os nossos passados e futuros comuns. Este sistema de correntes que protege e muda todos os destinos que giram, perpetuados, nos fortes elos que os seguram e apertam. São as veias e o sangue que nos dão a vida e a coragem para nela continuarmos a viajar, cambaleando, como pequenas crianças na descoberta dos seus primeiros passos.
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sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Pressupostos de verdade e de razão


117.


A caminhada em direcção a Montemor foi realizada debaixo do sinal da Cruz. Fernando Dias tinha dado instruções para que não existissem mais mentiras ou rodeios no que respeitasse às decisões a tomar. Alguns dos seus companheiros Templários sentiram fortes dúvidas na escolha realizada quanto ao caminho mais correcto e seguro para avançarem em direcção a Montemor. Amontoaram com todos os cuidados essas dúvidas bem no fundo das suas vontades, não ousando sequer questionar o mestre, apesar da insistência e do peso que os porquês de tal decisão lhes iam provocando. Com a perspicácia de quem já comanda homens desde sempre, Fernando Dias rapidamente deu conta de que os rostos dos combatentes estavam vestidos com as cores da hesitação. Imediatamente os orientou para que corrigissem as suas pouco convenientes suposições. Disse-lhes para que nunca mais lhes faltasse a coragem para o questionar de forma directa e precisa, sempre que sentissem em si crescer essas discordâncias.
- A força da nossa Ordem cresceu baseada em pressupostos de verdade e de razão, nos correctos exames que vamos construindo com a Fé que nos vai dando alimento à alma. É bom saber que não será fácil derrubarem-nos do dorso da nossa Montada, apedrejarem-nos a Esperança ou destruírem-nos a Coragem com que vamos construindo os nossos propósitos. As pequenas hesitações que, por força do cansaço acumulado, nos vão obscurecendo o espírito, terão sido as causadoras dessa incapacidade em me questionarem de forma franca e aberta. Essa sempre tem sido nossa norma e atributo, contudo hoje, aqui e agora, abdicaram com pessimismo da autoridade dessa regra. Peço-vos, como em tantas outras ocasiões, a confiança que sempre depositaram nas minhas decisões. Temos uma infanta para resgatar, um rei a quem obedecer, um Destino que devemos procurar atingir. Se decidi a localização do caminho mais inseguro e complexo para avançarmos até Montemor, foi porque assim me destinaram em confissão palavras de Luz.
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